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Leonardo Sakamoto

A cana e o trabalho escravo

Leonardo Sakamoto

29/04/2007 11h44

A vida útil do cortador de cana está diminuindo. De acordo com pesquisa da professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Maria Aparecida de Moraes Silva, nas décadas de 80 e 90 esse trabalhador rural permanecia na atividade por 15 anos. Hoje, ela acredita que esse prazo tenha diminuído para 12.

Uma pessoa chega a cortar mais de 15 toneladas de cana por dia, sob o sol forte, o que ao longo dos anos vai destruindo o seu corpo. Como o ganho é por produtividade, quem corta mais pode levar mais dinheiro para casa no final da safra. O problema é que os exames admissionais não são feitos com o cuidado que merecem e, muitas vezes, trabalhadores que não têm condições físicas para a tarefa acabam sendo contratados. Só nos últimos três anos, 19 pessoas morreram durante o corte da cana no interior do Estado de São Paulo (ver post abaixo).

Em reportagem publicada hoje, a Folha de S. Paulo utiliza dados do historiador Jacob Gorender para comparar o cortador de cana de hoje com o trabalhador escravo da época colonial e imperial, que tinha vida útil de 10 a 12 anos. O próprio editorial do jornal exortou que "os empresários que recebem os crescentes lucros da atividade têm a responsabilidade de zelar pelas condições de trabalho de seus empregados -sejam eles contratados direta ou indiretamente. Caso contrário, o Brasil continuará a ser o país dos lamentáveis contrastes, produzindo o combustível do século 21 com base em estatísticas sociais do século 19".

Já abordei várias vezes aqui neste blog como a expansão da cana está sendo feita em cima do sangue e suor dos trabalhadores rurais. O Ministério do Trabalho e Emprego tem cumprido o seu papel de fiscalização – apesar das reclamações de setores empresariais que vêem nisso um "entrave" para o desenvolvimento. Mas o ministério é voz dissonante dentro do governo federal, interessado no crescimento econômico a todo o custo (PAC, PAC, PAC…), a ponto do presidente da República ter alçado, recentemente, os usineiros à categoria de "heróis".

Quem são esses trabalhadores? De acordo com sindicatos, a idade desses homens escolhidos para o corte da cana reflete o vigor da força física – necessário para dar milhares de golpes de facões ao dia – ou seja, de 25 a 40 anos. Para descobrir um pouco mais sobre eles, vale a pena traçar um paralelo com os dados dos trabalhadores libertados da escravidão contemporânea pelo governo federal entre 2003 e abril de 2007.

A escravidão de hoje no Brasil – diferentemente da que existia até a lei Áurea, quando uma pessoa podia ser dona de outra pessoa – é definida pela soma de trabalho degradante (encontrado muitas vezes nos canaviais) com o cerceamento da liberdade de se desligar do serviço (seja por fraudes, ameaças, torturas psicológicas ou físicas). A maioria dos casos de superexploração do trabalho que acontece no interior do Estado de São Paulo não é trabalho escravo pela ausência de cerceamento de liberdade. Mas não deixa de ser uma situação extremamente grave, que fere e mata, e deve ser combatida com o mesmo vigor.

A Repórter Brasil trabalhou com dados do Ministério do Trabalho e Emprego e chegamos a algumas informações que traçam um perfil dos escravos libertos: 95% são homens, 75% são analfabetos ou não terminaram a 4ª série e 80% estão entre 18 e 44 anos.

Considerando que 34,29% dos escravos resgatados nesse período são naturais do Estado do Maranhão, uma das principais fontes de mão-de-obra para os canaviais de São Paulo, estamos falando provavelmente de dois grupos com a mesma origem social e econômica. Tomaram rumos diferentes apenas. Alguns vão enfartar nos canaviais de Ribeirão Preto, outros, outros ficam cativos nos pastos, lavouras e carvoarias da Amazônia e do Cerrado.

A cana não é a principal atividade econômica das propriedades rurais que utilizaram trabalho escravo, posto que fica com a pecuária, seguida pela produção de carvão e lavouras de soja e algodão. Mas se contarmos o número de libertados por ramo de atividade, a cana sobe várias posições.

Tanto que a maior libertação de trabalhadores escravos no Brasil contemporâneo se deu em uma fazenda de cana-de-açúcar. A Destilaria Gameleira, localizada em Confresa (MT), foi alvo de uma operação de fiscalização em junho de 2005, atendendo a uma denúncia de um trabalhador. A empresa, que já era reincidente no emprego desse tip ode mão-de-obra, assistiu a 1003 pessoas serem libertadas de suas terras de uma só vez.

Os empresários e o governo têm doces perspectivas com a ampliação da produção e exportação de etanol e açúcar. Um ganha dinheiro o outro divisas (que, no fim, também beneficiam o primeiro grupo, mas essa é outra história). A lua-de-mel entre ambos pode ser vista pela carteira de análises para 2007 do BNDES, que tem R$ 7,2 bilhões em pedidos de financiamento para projetos do complexo cana.

Mas para o trabalhador – seja cativo ou livre – sobra, como sempre, o lado azedo da cana.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.