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Leonardo Sakamoto

No Brasil, dignidade é produto de luxo, não coisa de trabalhador

Leonardo Sakamoto

09/01/2010 00h47

A Cosan obteve uma liminar na Justiça e deve deixar a "lista suja" em breve. O Ministério do Trabalho e Emprego e a Advocacia Geral da União, por sua vez, irão atuar para trazê-la de volta, como têm feito com casos semelhantes desde 2003.

E confirmando o que eu havia previsto a um amigo, os caros advogados da empresa encontrariam algum juiz substituto que toparia conceder uma liminar. Neste caso, Raul Gualberto Fernandes Kasper de Amorim. O que me admira é um certo desconhecimento do magistrado do trabalho com relação à natureza do que seja trabalho escravo contemporâneo. Por exemplo, não é necessário que exista restrição da liberdade de ir e vir para o crime ser configurado. Basta o trabalhador estar em condições degradantes de trabalho, que o alienem de sua dignidade (em outras palavras, tratado como instrumento descartável) – como era o caso da libertação na Cosan. Além disso, a "lista suja" é um instrumento administrativo e não jurídico e sua validade tem sido comprovada por decisões judiciais em todo o país, inclusive dos tribunais superiores.

A Cosan argumentou que pagou as dívidas com os empregados da terceirizada no momento da libertação. Parabéns, ela fez apenas o que centenas e mais centenas de fazendas flagradas com escravos também foram obrigadas a fazer. Pagar as dívidas não apaga o crime, pelo contrário, é a confirmação de que ele existiu.

Outro fato ignorado pelo magistrado é que a maioria das empresas que utilizam trabalho escravo se valem de contratadores de mão-de-obra, os famosos "gatos", para fugir dos encargos trabalhistas e da responsabilidade sobre a condição de vida e saúde dos trabalhadores. Muitos desses "gatos" possuem pequenas empresas para justificar a contratação de pessoal, mas na prática, não têm condições de mantê-las. Ou seja, são artimanhas de fachada para burlar o fisco, o que tem sido comum no trabalho escravo no setor sucroalcooleiro.

Não damos o devido valor à nossa memória, mas se lembrarmos o caso da Emenda 3, vamos entender melhor o que o argumento da Cosan, que foi aceito pelo juiz substituto, significa.

A Emenda, que integrou o projeto que criou a Super Receita, propunha que auditores fiscais federais não poderiam apontar vínculos empregatícios entre empregados e patrões, mesmo quando fossem encontradas irregularidades. Apenas a Justiça do Trabalho, de acordo com o texto, é que estaria autorizada a resolver esses casos. Na prática, a nova legislação tiraria o poder da fiscalização do governo, o que dificultaria o combate ao trabalho escravo e a terceirizações ilegais que burlam direitos do trabalhador.

A emenda foi proposta atendendo à solicitação de empresas de comunicação e entretenimento que contratam funcionários por meio de pessoas jurídicas. O Congresso aprovou, mas Lula vetou e os trabalhadores foram às ruas para apoiar o veto, o que pesou no Congresso. Passeatas no ABC Paulista, por exemplo, reuniram milhares de pessoas contra essa lei. Vira e mexe alguma deputado ou senador ameaça colocar o veto de Lula para que seja votado.

Em um país onde milhões de pessoas são tratadas como ferramentas substituíveis, a fiscalização do trabalho desempenha um papel fundamental. Sem esse aparato de vigilância, as relações de trabalho seriam bem piores do que realmente são. A desregulamentação não levaria à auto-regulação pela sociedade, como profetizam alguns economistas (sic), mas sim ao caos total. Se com regras já temos trabalho escravo, infantil, superexporação, imagine sem.

Como já disse, no campo, isso ajuda muito fazendeiro que tem um contratador de mão-de-obra com uma empresa de fachada, minúscula e picareta, montada para empregar safristas. Dessa forma, o fazendeiro se acaba se livrando de arcar com os direitos trabalhistas, que também nunca serão pagos pelo contratador – boa parte das vezes tão pobre quanto os peões. E consegue concorrer aqui dentro e lá fora sem reduzir sua margem de lucro. Que em nosso país é mais sagrado que todos os santos e orixás.

Projetos como a Emenda 3 não são emergenciais, como alegam seus defensores, pelo contrário. Já fazem parte de uma mesma política para diminuir o poder que o Estado tem de garantir que o empresariado tenha um patamar mínimo de bom senso. Com o aumento da competição, cresce também a precarização do trabalho e com ela o discurso da necessidade de desregulamentação, ou seja: pá de cal nos direitos adquiridos e vamos embora que o mundo é uma selva.

Nesse ritmo, não me espantaria ver anúncios estampados em página dupla nas revistas semanais de circulação nacional dizendo: "A Usina X pensa em seus empregados. Ela paga 13º salário. Isso sim é responsabilidade social!". E nossos filhos olharão para aquilo e, espantados, perguntarão: "pai, o que são férias?"

E já que estava falando sobre interpretações errôneas, não podia deixar esta de lado. O ministro da agricultura Reinhold Stephanes reclamou que a Cosan entrou na "lista suja" do trabalho escravo por uma fiscalização que aconteceu no distante ano de 2007. Se ele não tivesse faltado aos convites para participar das reuniões da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo ao longo dos anos, na qual seu ministério tem um assento (ocupado por pessoas interessadas, diga-se de passagem), ele saberia que a empresa entra na relação após esgotadas seus recursos de defes. Ou seja, a própria empresa é que prorroga sua inclusão na lista. Vamos ver se entendi: Stephanes não entende direito do assunto e, mesmo assim, diz que foi um erro. Bem como a ladainha de Chicó, de Ariano Suassuna, no Auto da Compadecida: "Não sei, só sei que foi assim".

Além disso, Stephanes alegou que a empresa faz parte do compromisso nacional do setor sucroalcooleiro endossado pelo governo por isso não poderia estar na "lista suja". Bem, apesar de uma coisa não ter nada a ver com a outra, vale a pena esclarecer a efetividade desse instrumento. Quem for verificar o compromisso constatará que, por enquanto, ele está na fase de adesões e confirmações. Ou seja, não há monitoramento das práticas dos signatários, apenas declarações de boas intenções. Que, como o ministro deve saber, não vale nada.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.