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Leonardo Sakamoto

Não se morre de frio, mas sim de descaso

Leonardo Sakamoto

19/09/2010 06h47

Na noite deste sábado, uma das frias do ano, moradores de rua se aninhavam ironicamente na fachada de um prédio no Centro da capital paulista que, anos atrás, já recebeu uma ocupação dos movimentos por moradia. Hoje, como tantas outras centenas de edifícios, este está fechado, ignorando a função social prevista na Constituição e servindo à especulação imobiliária.

Não é novidade que a Prefeitura de São Paulo não tenha coragem (ou interesse) de levar a cabo um programa decente de moradia – e não é de agora. O pior é que o déficit qualitativo e quantitativo de habitação poderia ser drasticamente reduzido se esses imóveis trancados por portas de tijolos pudessem ser desapropriados e destinados para quem precisa. Tal no campo como na cidade… Mas em uma sociedade cuja pedra fundamental são a intocabilidade da propriedade privada e a possibilidade de lucro e não o respeito pelo ser humano isso fica difícil, não?

Há prédios que devem milhões de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e que poderiam ser alvo do Decreto de Interesse Social, uma vez que permanecem vagos por anos. Após uma reforma completa financiada pela Caixa Econômica Federal poderiam ser entregues às famílias.

Muitos perguntam: por que a área central da cidade é o alvo preferido de movimentos por moradia hoje? "Porque lá já existe tudo, não é preciso levar estrutura. Há escola, hospital, cultura… Ninguém vai pagar quatro conduções a uma empregada diarista que mora na periferia", me explicou uma jovem ligada a um dos movimentos. Com exceção de algumas bolhas residenciais da elite, os mais ricos tendem a ficar nas regiões centrais, com mais infra-estrutura, enquanto os pobres são enviados às rebarbas da cidade, onde São Paulo acaba. Uma triste inversão.

Além da desapropriação, há outras formas de impedir que a especulação imobiliária faça mais sem-teto. A aplicação de um IPTU progressivo, que aumenta proporcionalmente com o tempo em que o imóvel permanece fechado, se bem aplicado (ou seja, se o perdão não for dado aos mais ricos), pode fazer com que os proprietários pensem duas vezes antes de cobrar um valor muito alto pelo aluguel.

A recuperação da área central de São Paulo não se restringe a uma valorização funcional e estética das ruas, edifícios e bens culturais, como defendem algumas organizações empresariais. Inclui também o repovoamento do local, trazendo vida à região, com incentivos para o estabelecimento das classes média e baixa. O que tem sido feito até agora é o contrário: expulsa-se a patuléia e ergue-se monumentos à música e às artes.

Tem gente que reclama da validade de ocupações, mas o fato é que muitas iniciativas e políticas públicas não teriam surgido sem essa pressão popular. Até porque, se deixar na mão do Estado resolver isso por conta própria, ele vai jogar coma barriga. Ou melhor, criar apenas instrumentos de mercado, apoiando o financiamento para compra de imóveis, e deixando ao relento aqueles que não podem comprar nem um cobertor em uma noite gélida de inverno, que dirá um teto.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.