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Leonardo Sakamoto

Todos deveriam ter o direito de ser mesário por um dia

Leonardo Sakamoto

03/10/2010 10h24

Durante um punhado de eleições, entreguei-me às delícias de ser mesário em uma seção eleitoral.

É claro que a primeira convocação foi um tanto quanto dramática, feito reservista que é chamado à guerra. Do tipo: "minha vida (aos domignos de eleição) acabou". Há pessoas com vocação cívica para a função e recebem o papelzinho da Justiça Eleitoral com um punjante sorriso. Mas, no final das contas, foi uma experiência ímpar que não teria trocado por nada nesse mundo. E não era pelo miserável vale-coxinha que a gente recebia e torrava tudo em esfiha na lanchonete ao lado do colégio eleitoral e sim por ver como o brasileiro vota.

O local para o qual eu era aliciado, ou melhor, convocado, era no Campo Limpo, bairro da zona Sul paulistana, próximo de onde eu morava. De manhã, um inferno. Todo mundo aproveitava para votar cedo e provavelmente aproveitar o domingo de sol, assistir a corrida de Fórmula 1 ou pegar um Desafio ao Galo na TV. Perto do meio dia, vinha a patota que fugia do almoço para votar – muitos trazendo, em punho, o frango com farofa e o refrigerante dois litros comprado na padaria da esquina para a refeição em família.

Em toda a eleição, lá pelo meio da tarde, aparecia um senhor, do alto de seus 50 anos, com-ple-ta-men-te mamado. Lei Seca? Ninguém sabe, ninguém viu. Quando ele despontava, cambaleante, no final do corredor, já abríamos o sorriso. Gente boa, caladão, entregava o título soluçando 51 e ia para a urna. Ficava olhando, olhando, parado, estático, imóvel. Depois começava a teclar alucinadamente e eu pensava "agora vai". Depois, parava e ficava olhando de novo. Coçava a cabeça… O que ele olhava? A foto dos candidatos? Será que digitava um código secreto que dava acesso a algo que não sabíamos? Estávamos em uma época em que urna eletrônica era novidade, então o pessoal queria conhecer aquela maquininha que obedecia a vontade dos dedos. Para muitos, ela era o máximo de tecnologia que iam tocar no dia-a-dia. Não podíamos interferir no processo, mas lá na fila, exaltados, a turba gritava: "alguém tira esse bêbado daí ou eu mesmo tiro!". Demorava algo em torno de 10 a 15 minutos. Ao final, quieto, pegava o comprovante de votação, fazia um movimento como se baixasse a aba do chapéu em respeito, e saía, escoradando a parede, lentamente, para ela não cair.

Esse negócio de novidade tecnológica rendeu outras boas, principalmente quando as mães levavam a gracinha de seus filhinhos hiperativos e autoritários para votar. Literalmente. Uma delas trouxe um menino de oito anos que ficou brincando com a urna eletrônica, feito videogame. Quando ele já havia conquistado pontos o suficiente para passar de fase, o nosso presidente de seção, educadamente, avisou que aquilo não era brinquedo. A mãe, enfurecida, gritou algo do tipo: "eu pago meus impostos e por isso meu filho vai brincar quanto tempo ele quiser. Brinca, filho!" E o menino brincou. Quem disse que eleição não pode ser algo lúdico e familiar?

Isso sem contar o pessoal que havia encucado com a TV a propaganda do Tribunal Superior Eleitoral, que usava personagens de nossa história cultural para servir de exemplo. Esses queriam porque queriam votar no tal do Monteiro Lobato ou no Vinícius de Morais. "Vocês estão me enganando. Eu quero o número daquele tal de Lobato que eu vi na propaganda." Até explicar que focinho de porco não é tomada, a fila lá fora já estava, de novo, fazendo a curva. "Mas, minha senhora, esse aí morreu faz tempo…" "Se morreu, porque a TV mostrou?" Touché.

Havia o eleitor-consciente-demais que queria, depois do voto, fazer uma declaração pública e um discurso. "Votei em ciclano porque ele…" Educadamente, vinha a explicação de que ele não podia fazer aquilo – o que nunca adiantava muito. Esses eram que ficavam mais violentos. Rolou até arranca-rabo com fiscal de partido, pago para acompanhar a votação na sala. Mas quando estava com isso na cabeça, o eleitor não arredava pé antes de dizer tudo o que tinha para dizer.

E quando o sistema eleitoral encontrava como os eleitores analfabetos? Resultado cuspido e escarrado de sucessivas eleições que colocaram no poder pessoas que não foram capazes (ou não tiveram o interesse) de universalizar a educação de qualidade e não estavam nem aí para o fato de ter gente que não conseguia ler o próprio nome, quiçá enviar uma carta crítica a um representante. Para esses políticos, o que o povaréu precisa é conseguir reconhecer a foto quando ela salta na urna. O resto, é resto. Não podíamos dizer como os eleitores deveriam votar e alguns não tinham idéia da cara do candidato a deputado, porque era "indicação" de um amigo. "Olha, coloquei o número, mas não sei se é esse cabra, não. Vocês não podem vir aqui me dar um auxílio?" E não podíamos, pelo menos a gente achava que não podia. Dava dó ver a vergonha deles ao ter que sujar o dedo com o carimbo azul da "assinatura". Que fazia tom sobre tom no azul cimento que impregnava a roupa de alguns, provavelmente pedreiros e serventes no horário de almoço de uma obra lá por perto.

No final do dia, o extrato impresso dos mais de 500 votos da urna batia com o resultado da votação no restante do país, do estado e do município. Mostrava que aquilo ali era, realmente, um pedacinho representantivo do Brasil.

Moral da história? Nenhuma. Ou melhor, respeite o mesário. Amanhã, ele pode ser você.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.