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Leonardo Sakamoto

Mais uma década de sangue derramado em vão

Leonardo Sakamoto

10/12/2010 07h56

Nos últimos dez anos, o Brasil bateu recordes na geração de empregos, reduziu a fome e a pobreza, manteve sua economia estabilizada, consolidou sua democracia. Tornou-se parte de um acrônimo (Bric), ganhou respeito internacional e começou a pavimentar seu caminho para se tornar a quinta maior economia do mundo – processos que, em maior ou menor grau, devem ser creditados aos governos que conduziram o país nesse período. Diante de um cenário de pujança como esse, pergunto-me porque o Brasil continua encontrando formas idiotas de matar seus filhos.

Pensei que não cometeríamos os mesmos tipos de erros dos anos 90 no momento em que fossemos abrir o segundo pacote de décadas deste século, mas não foi bem assim. Nos últimos dez anos, não houve grandes chacinas conhecidas, como Eldorado dos Carajás, Vigário Geral e Corumbiara. Mas o modelo se manteve, ou seja, o "quem" se mata. O que leva à pergunta: uma "limpeza social" a conta-gotas é menos dolorosa do que aquelas que ocorrem em baciadas?

Não saberia dizer se o ser humano é o único animal que mata por prazer (sempre me perguntei se as hienas riem de gosto ou de desgosto pela constatação de sua própria natureza ao atacar suas vítimas…). Mas certamente somos uma espécie que liquida seu semelhante pelos motivos mais idiotas e levianos, que ultrapassam a busca pela sobrevivência dos animais ditos selvagens.

Temos especial prazer em destruir o diferente, aquilo que não entendemos ou que cisma em ser uma pedra no sapato da "normalidade" ou da "inexorável" marcha do progresso. Nessa toada, nos últimos dez anos, o país assistiu centenas de assassinatos de trabalhadores rurais, indígenas, quilombolas, ribeirinhos em conflitos agrários (e daqueles que ousaram os ajudar), massacres de sem-teto, mortes de homossexuais. Muitas vezes sob o nosso silêncio cúmplice, outras com o endosso de sorrisos de cantos de boca diante de notícias de tragédias ou mesmo com a anuência de piadas maldosas contadas em rodas de amigos – sempre com o complemento "mas é só uma brincadeira, vocês sabem". É uma violência diferente daquela que encontramos no dia-a-dia (que também é abominável e leva ao mesmo sofrimento) mas que não encontra tanto respaldo em grupos na sociedade como essas mortes decorrentes da intolerância, da negação da dignidade e da ignomínia.

Separei cinco exemplos dos dez últimos anos que ajudam a entender que país é esse que tem vergonha de respeitar a vida e os direitos humanos e que gosta mesmo é de sangue.

1) A chacina de Unaí
No dia 28 de janeiro de 2004, quatro funcionários do Ministério do Trabalho e Emprego foram assassinados durante uma fiscalização rural na região de Unaí, Noroeste de Minas Gerais. Seis meses depois, a Polícia Federal afirmou ter desvendado o crime, com a prisão e indiciamento de envolvidos, que incluíam os irmãos Norberto e Antério Mânica, família que é uma das maiores produtoras de feijão do país. Até hoje, ninguém foi julgado e a maioria está respondendo o processo em liberdade. Nesse meio tempo, Antério foi eleito e reeleito prefeito de Unaí e condecorado pela Assembléia Legislativa de Minas Gerais.

2) A emboscada de Dorothy Stang
Em fevereiro de 2005, a missionária norte-americana naturalizada brasileira Dorothy Stang foi assassinada com seis tiros – um deles na nuca – aos 73 anos, em uma estrada vicinal de Anapu (PA). Ela enfrentava ameaças de morte de fazendeiros da região, descontentes com sua defesa dos Programas de Desenvolvimento Sustentável como modelos de reforma agrária na Amazônia. Dois fazendeiros foram condenados a 30 anos de cadeia por serem os mandantes do crime – Vitalmiro Bastos de Moura e Reginaldo Pereira Galvão, após um vai e vém de anos de julgamentos. Estão recorrendo, o segundo em liberdade.

3) A morte da população de rua em São Paulo
Em uma madrugada de agosto de 2004, moradores de rua foram espancados no Centro de São Paulo, na região do Largo São Bento, Praça João Mendes e Rua 15 de Novembro. Sete não resistiram e morreram em decorrência dos ferimentos. Policiais militares e seguranças privados foram apontados como responsáveis, formando uma espécie de grupo de extermínio. Até agora, apenas um deles foi julgado e condenado – e está recorrendo. De acordo com os policiais que atuaram na investigação do crime, as vítimas foram atingidas com pauladas na cabeça – portanto, os executores tinham clara intenção de matar.

4) O assassinato covarde da intolerância
(Observação: estes acontecem às pencas, mas muitas vezes não são registrados como tal.)

Conforme relato do site Vírgula, o assassinato de Edson Néris da Silva, caso que virou emblemático, completou uma década em fevereiro deste ano. Edson, que era adestrador de cães, passeava de mãos dadas com seu companheiro na Praça da República, região tradicionalmente frequentada por gays, quando foi surpreendido por um grupo neonazista. Ele foi cercado e brutalmente agredido com chutes e golpes de soco-inglês. A Polícia chegou a deter 18 suspeitos, sendo duas mulheres. No julgamento, alguns receberam penas brandas por somente participar do ataque, já outros foram condenados a 21 anos de prisão por crime de formação de quadrilha e homicídio triplamente qualificado. Beneficiados pela progressão das penas, todos já estão em liberdade.

5) O genocídio Guarani Kaiowá
Nos últimos dez anos, o Brasil tem tido sucesso na tentativa de transformar esse povo em lenda de livros de história. Os guarani kaiowá do Mato Grosso do Sul enfrentam a pior situação entre os indígenas do Brasil, apresentando altos índices de suicídio e desnutrição infantil. O confinamento em pequenas parcelas de terra por conta do avanço do agronegócio no estado é uma das razões principais para a precária situação do povo. Em 2009, pelo quinto ano consecutivo, esse Estado concentrou a maioria dos assassinatos de indígenas no país. Das 60 mortes registradas no ano passado, 33 ocorreram por lá. De acordo com os registros, a maior partes dos assassinatos está diretamente relacionada com a disputa pela terra ou pelos recursos naturais. Mesmo em reservas já homologadas, os fazendeiros-invasores se negam a sair.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.