O outro (distante) é sempre mais belo
Quando estamos em trabalho de campo, esquecemos que muitos dos testemunhos que colhemos como jornalistas (e com os quais, consciente ou inconscientemente, moldamos os nossos) são construções, criadas por determinada coletividade com fins políticos. Por vezes, respostas são dadas de maneira que ajudem uma causa ou que respondam à nossa demanda (como a história do cacique que vendia madeira, mas disse ao repórter que combatia serrarias).
A tentativa de imparcialidade jornalística, de resgatar o maior número de versões para reconstruir um modelo o mais próximo possível da realidade de determinado momento, depende da pluralidade de discursos colhidos. Mas isso não basta – se é que algo baste, a bem da verdade. No âmbito do jornalismo, a discussão entre buscar uma hipócrita neutralidade ou uma perigosa tomada de partido é recorrente.
No Ocidente, a viagem para além do conhecido assumiu ao longo dos tempos um papel fundamental de construção da realidade. A modernidade está no centro, mas esse centro só se explicita no contato com uma fronteira, em uma zona de contato. A ânsia de se fundir é decididamente não moderna, contrariando as expectativas dos teóricos do progresso. Muitos viajantes são capazes de chegar ao final dessa fusão. E, a partir desse momento, acaba o contexto de alteridade e se deixa de saber quem é.
O correspondente de guerra, por seu conhecimento da situação e a inserção desta em um contexto internacional, pelas ideologias que pode ter cultivado ao longo da vida, pelo poder que sabe existir na mídia e pelas condições extremas de trabalho, é vulnerável a essa absorção. Sem contar o fato de que, muitas vezes, está sozinho e refém de si mesmo, de seus medos e aspirações.
A batalha do povo, tanto na Rússia czarista quanto no Timor indonésio, pode se tornar uma batalha do jornalista. E pelo jornalista. Projeta-se nesse determinado ponto crítico da História a própria história pessoal. Pessoal, não individual, pois também travam a luta as gerações passadas que resultaram no jornalista. Por vezes, as batalhas e os conflitos não demonstram apenas lutas, mas disputas de ideais em que o repórter acredita ou não.
Cair no maniqueísmo é perigoso. Deixar-se levar pelo discurso construído pelos moradores para compreender a guerra. Polariza-se algo que é obviamente muito mais complexo. Mas é a forma pela qual um jornalista encontra para poder encaixar as peças, mesmo que sobrem algumas depois. Talvez esperando que depois um outro "eu" venha reorganizar e terminar o quebra-cabeça.
Muitos historiadores recomendam que se estabeleça uma empatia com o passado e esqueça-se o presente. O que é um equívoco, pois nos relacionamos com a história dos vencedores, das classes dominantes. Porque o que chega até nós é um espólio cultural apropriado, um despojo de guerra, a custo de milhares de vidas destruídas. Lembrando que, ao resgatar os vencidos com empatia quase melancólica, traz-se à tona, na verdade, a história dos vencedores com seus despojos de guerra.
A História é impotente enquanto se relaciona com a idéia de progresso. Um progresso que pode ser melhor visualizado se lembrarmos do Fausto, de Goethe, ou da interpretação do Angelus Novus, de Benjamin. "A essência da História que está na semente do tempo contém um redenção messiânica da humanidade." No "agora" está presente toda a história humana. Quando se recupera a história da luta dos operários alemães, recupera-se a história de toda a luta de classes. Não de uma forma contínua, mas servindo como ícone, tornando-se exemplo universal.
Desculpem. Apenas reflexões e resgates de quem está com saudade de ir a campo novamente. Aliás, peço perdão se citei alguém sem o devido crédito. Redemunhos de idéias com antigas anotações têm sérios efeitos colaterais.
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