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Leonardo Sakamoto

É possível viver em São Paulo sem automóvel?

Leonardo Sakamoto

18/05/2011 11h59

A pergunta acima surgiu diversas vezes sobre a mesa de bares e rodas de amigos, não com o objetivo de resolver os problemas da metrópole (é preciso muito mais cerveja para isso), mas sim para tentar entender o nosso comportamento individual e, quiçá, melhorá-lo. Eu me mantenho sem, porque, hoje, moro do lado do trabalho. Ou seja, minha opinião é "café com leite" nesse assunto, praticamente não vale. É diferente de uma senhora que tem que pegar três conduções e leva duas horas para limpar a casa de alguém no Centro da cidade.

Pedi para o jornalista, economista e paulistano Thiago Guimarães, pesquisador do Instituto de Transportes e Logística de Hamburgo e um grande especialista em mobilidade urbana, responder a pergunta. Coincidentemente, o seu mestrado em Planejamento e Desenvolvimento Urbano, defendido na Alemanha, foi sobre a "diferenciada" linha 6 do metrô de São Paulo – aquela do quiprocó da estação Higienópolis. Segue o texto do homem:

É possível viver em São Paulo sem automóvel?
Eu já ouvi essa pergunta de muita gente que pode comprar um carro, mas pensa duas vezes antes de fechar negócio. Ainda mais com toda essa preocupação em torno do meio ambiente, acho a pergunta bastante válida. E, para mim, a resposta é translúcida: sim, é possível viver em São Paulo sem automóvel. Mas para isso, você tem de se enquadrar – ou pelo menos ter alguns traços de comportamento – de um dos tipos abaixo.

•Você tem espírito jovem (e na maior parte dos casos é jovem), cultiva um estilo de vida independente, moderno e saudável – "sustentável" como se diz hoje em dia. Vive um romance perfeito: ama sua bicicleta e sua bicicleta ama você. Ainda acredita (por enquanto) que dá para fazer tudo com ela: ir ao trabalho, entregar pizza, colar na casa da namorada, aparecer na balada. Sua segunda profissão é, quase como um missionário, tentar fazer com que os outros também acreditem que bicicleta é sim um meio de transporte;

•Acostumado a assistir aos Jetsons desde menino, você se descreve como alguém que acredita no Progresso. Conta com a sorte de ter à disposição um piloto e um helicóptero para sua agenda repleta de inadiáveis compromissos, que não podem ficar à mercê de fatores externos. Tudo o que acontece lá embaixo (no nível da rua e dos cidadãos comuns) não é da sua conta. E, por falar em conta, seu patrimônio é muito superior aos dos outros e praticamente intocável. Intocável até por seu maior parceiro: o Estado brasileiro.

•Uns podem até considerá-lo masoquista. Outros, apenas arrojado. Mas você gosta de liberdade de escolha: opta, compulsória ou voluntariamente, entre dividir o percurso com automóveis e caminhar por aquilo que é chamado – por exclusão – de "calçada". Pois afinal, calçada tal como deveria ser é coisa rara nas cidades brasileiras. Irregulares, esburacadas, escorregadias, picotadas, bloqueadas, interrompidas, inviáveis, estreitas, inexistentes. Você sente medo até mesmo na "faixa de segurança" – expressão que quase cai em desuso por não fazer sentido algum em São Paulo. Mesmo assim, você anda. E tenta, assim, com os pés no chão, usufruir da cidade que deveria ser sua.

•Paciente, cada vez mais paciente. Não importa se seu ídolo é o Eduardo Suplicy ou o Dalai Lama. O fato é que você aprendeu, por bem ou por mal, a esperar comportadamente. Sem reclamar muito, porque não adianta. Sem protestar muito, porque senão vem gás de pimenta ou cacetete. Esperar pelo ônibus que chega quando quer e já está lotado. Esperar pela vez em que o motorista não pisará fundo rampa abaixo, confundindo a rua com um brinquedo do Playcenter. Esperar pelo dia em que pessoas não forem mais transportadas como gado. Esperar pelo ano que São Paulo terá finalmente uma rede decente de metrô, compatível com aquela que a metrópole merece.

Se você não se identifica e nem quer se identificar com um dos perfis acima, é provável que já tenha um veículo motorizado ou se incline a comprar um carro ou uma moto, e engrossar o trânsito da cidade. Aí passará a ser mais um motorista, contribuindo para as mudanças climáticas, para os congestionamentos, para o barulho. Mas nem por isso sua decisão deve ser considerada burra.

Até porque as coisas mudam em São Paulo. Mudam para pior. O metrô fica cada dia mais cheio e mais insuportável. A prefeitura aumenta a tarifa do ônibus e cobra pouco pela melhoria do nível de serviço dos ônibus, que continua dominado por um oligopólio. A cidade continua crescendo de modo desordenado. A economia sobe, a renda aumenta, o preço dos carros cai.

Mas, sim, é plenamente possível viver sem carro em São Paulo. Basta querer.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.