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Leonardo Sakamoto

É justo estacionar de graça na rua?

Leonardo Sakamoto

16/11/2011 02h03

Pedi para o jornalista Daniel Santini, cicloativista, autor do blog Outras Vias e editor de O Eco Bicicletas, um texto sobre as ciclofaixas implantadas em Moema, bairro rico da capital paulista, que geraram polêmica entre ciclistas e motoristas. Vale a pena a leitura:

A rede cicloviária de Moema completou 11 dias nesta quarta. Trata-se do primeiro conjunto oficial de caminhos com sinalização e demarcação implantados pela Prefeitura de São Paulo. É uma das primeiras tentativas de se tirar do papel o mapeamento de ciclorrotas da cidade e um passo importante para a criação do primeiro planejamento cicloviário da capital.

Mal foram pintados os caminhos, as críticas começaram. A mais caricata talvez seja a da comerciante, que visivelmente nervosa, irritada e cansada, bradou sua aflição ao repórter do Jornal Nacional, da TV Globo, em ver o espaço antes exclusivo para o estacionamento de automóveis se transformar em uma rota para bicicletas: "Aonde que eu vou colocar as minhas clientes que são milionárias, que andam de carro importado? Você acha que as minhas clientes vão andar de salto alto e bicicleta?". A entrevista foi parar no youtube e a aflição fez sucesso. Até esta terça-feira, mais de 18 mil pessoas já haviam acessado o vídeo.

Mais sensatos e contidos que a dona de boutique de luxo preocupada com o futuro das suas pobres clientes milionárias, muitos moradores e comerciantes da região têm feito críticas bem fundamentadas e com certa razão. A principal e mais justa talvez seja em relação ao formato de trechos das duas ciclofaixas que compõem o sistema, considerados inseguros. Em vez de cancelar as vagas de estacionamento nas ruas, a Companhia de Engenharia de Tráfego tentou empurrá-las para o meio da rua, deixando as ciclofaixas entre a calçada e os carros estacionados. Ficou apertado, há o risco de motoristas desatentos abrirem as portas em cima de ciclistas e motoristas distraídos baterem atrás dos carros parados literalmente no meio da rua.

E é este o cerne do debate, um ponto sobre o qual será preciso refletir cada vez mais com o aumento da frota na capital. É certo que as ruas sejam utilizadas como estacionamento privado de automóveis particulares? Não é de hoje que os moradores de Moema têm manifestado preocupação em relação a isso. Antes mesmo de a rede cicloviária ser instalada no bairro, a chiadeira já era grande sobre o direito de se estacionar na rua sem pagar por isso.

Quando, no ano passado, a Prefeitura anunciou que cancelaria vagas de estacionamento, comerciantes e vizinhos reunidos em torno da Associação de Moradores e Amigos de Moema fizeram passeatas com cartazes, cobraram parlamentares e o poder executivo e realizaram até um debate na Assembléia Legislativa de São Paulo.

O que motivou a mudança feita na época é bastante questionável. As vagas não foram retiradas para ampliar calçadas ou criar ciclofaixas, mas sim para aumentar a velocidade do trânsito cada vez mais intenso de automóveis. A alteração foi feita em sintonia com a política de se priorizar o fluxo em detrimento à segurança adotada durante toda a lamentável gestão do ex-secretário Alexandre de Moraes à frente da Secretaria Municipal de Transportes. Ele foi sabiamente substituído este ano por Marcelo Cardinale Branco, secretário de linha totalmente oposta, que tem marcado sua administração pela "preferência à vida". Em função das medidas de Moraes, Moema tornou-se em 2010 um bairro mais rápido e tenso, mas não foi contra o aumento da velocidade nas ruas que os moradores reclamaram. Foi contra o cancelamento das vagas que utilizavam.

Lygia Horta, a presidente da associação dos moradores, chegou a falar em "imposição autoritária" e houve quem lembrou que, como boa parte dos moradores tem alta renda, para escapar do rodízio muitos têm mais de um carro, apesar de apenas uma vaga na garagem. Onde manter o segundo carro parado durante a semana?

Esta é a discussão que deve ser feita agora em que as ciclofaixas são questionadas. Como espaços públicos, as ruas devem ser utilizadas para estacionamento privado? Quem se locomove de carro e é responsável por congestionar a cidade toda e gerar índices tóxicos de poluição deve ser beneficiado com o direito de estacionar de graça? Milionários que freqüentam butiques de luxo devem ter o privilégio de uma cidade formatada para as suas necessidades? Ou será que não é hora de pensar em substituir mais vagas de automóveis por faixas não só para bicicletas, mas também para ônibus? Em ampliar calçadas? Em pensar também nos pedestres? O poder público deve incentivar as pessoas a adotarem hábitos mais saudáveis como pedalar ou caminhar?

Em tempo: as críticas de que as ciclofaixas de Moema não têm sentido por não levarem a lugar nenhum são infundadas. Apesar de a mídia ter ignorado até agora a questão, as duas faixas exclusivas para bicicletas são parte de uma rede cicloviária instalada na região, do qual fazem parte também rotas devidamente sinalizadas para o compartilhamento.

Tal rede em breve deve ser ampliada para outras regiões. Para ver o mapa da rede cicloviária, clique aqui.

Não deixe de ler mais sobre a rede cicloviária de Moema direto no site da CET (as fotos e imagens que ilustram este texto foram retiradas de lá).

E, se você concorda com a criação de ciclofaixas no bairro e o avanço das mudanças em curso em São Paulo, coloque seu nome neste abaixo-assinado.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.